Pisos constitucionais: cidadelas inegociáveis da política progressista

Filas para atendimentos médicos ou escolas precárias são um dos cabos eleitorais com que o extremismo bolsonarista pode contar

Francisco Tavares, Camila Vaz e David Deccache

23 de abril de 2024

O Brasil viveu, entre 2016 e 2023, sob a mais rígida regra de austeridade colocada em prática no mundo. A Emenda Constitucional 95, imposta na esteira do golpe que subtraiu o mandato de Dilma Rousseff, estabeleceu um teto de despesas públicas primárias, com rigidez constitucional, previsão de duração vintenária e sem exceções para alterações demográficas ou macroeconômicas. A medida, irreal em seus próprios pressupostos, não se sustentou e teve de se abrir para incontáveis e emergenciais exceções, em particular durante o período da pandemia. Foi suficiente, contudo, para impedir uma condução das finanças públicas planejada, democraticamente legitimada e referenciada na expansão do acesso aos direitos fundamentais.

Derrogado o teto de gastos, o governo Lula aprovou, em 2023, uma nova regra, conhecida como “Regime Fiscal Sustentável” e disposta na Lei Complementar 200. A medida estabeleceu uma gama de controles e bloqueios à expansão das despesas governamentais. Segundo estudo de Deccache e Tavares (2023), pode-se observar que, sob condições específicas, como metas rigorosas de resultado primário aliadas a uma desaceleração econômica, o aumento dos gastos públicos pode ser menor do que o registrado em certos períodos entre 2016 e 2022. A norma, que já foi definida pelo próprio ministro Fernando Haddad como uma das mais rígidas em todo o mundo, dispõe que, mesmo sob um quadro de prosperidade ou crescimento da economia, as despesas primárias não devem se expandir para além de 70% da variação positiva das receitas e em nenhuma hipótese acima de 2,5% ao ano.

Presidente Lula e equipe assinando a Lei Orçamentária Anual de 2024 (Ricardo Stuckert/PR)
Presidente Lula e equipe assinando a Lei Orçamentária Anual de 2024 (Ricardo Stuckert/PR)

Nesse contexto, retornou ao debate a questão dos pisos constitucionais referentes à saúde e à educação e a possibilidade de flexibilizá-los diante do novo regime fiscal. Explicamos: a Constituição brasileira dispõe que os gastos com saúde e educação correspondem a um percentual mínimo das receitas públicas. Desse modo, quando a economia cresce e a arrecadação aumenta, o país vê-se juridicamente obrigado a elevar os dispêndios com essas duas áreas, socialmente tão relevantes e ainda distantes da necessária universalização com elevada qualidade. Sob a nova regra, contudo, se os demais gastos se dilatam apenas até 70% do aumento da receita, é inevitável que, em algum momento, as despesas com esses dois direitos fundamentais absorvam as demais, inviabilizando a máquina pública. Para resolver esse problema, o governo encontra duas alternativas: i) rever o regime fiscal, por meio de uma simples Lei Complementar, o que implica afastar ou, ao menos, mitigar a escolha em favor da tese (já falseada pela produção científica dedicada ao assunto) de que duras restrições para os gastos sociais são necessários para a estabilização econômica; ou ii) alterar a Constituição e subtrair a histórica conquista civilizatória da garantia de pisos para o investimento em saúde (art. 198) e educação (artigo 212). Infelizmente, declarações da equipe econômica acenam com esta última possibilidade.

A revogação ou mitigação dos pisos constitucionais em saúde e educação encerra um problema de tríplice natureza: jurídica, política e econômica. Juridicamente, o encolhimento da disponibilidade orçamentária em favor da saúde e da educação equivale à imposição de norma tendente à abolição desses pétreos direitos fundamentais, o que exorbita os limites do poder constituinte derivado, ou poder de reforma constitucional. Seria, portanto, uma medida inválida, na forma do artigo 60, parágrafo 4o, da Constituição. É consensual na bibliografia do contemporâneo direito constitucional a ideia de que a orçamentação pública se acopla indissociavelmente à promoção dos direitos humanos, de modo que as garantias fiscais destes últimos estão incluídas em toda a extensão de sua proteção constitucional.

O problema político é mais profundo. O atual governo se elegeu a partir de um programa e uma mobilização de expectativas sociais que miravam a superação da terra arrasada deixada por Bolsonaro. O abandono do SUS e da educação pública em um mandato definido por patrulhamento extremista enredado em escândalos de corrupção no MEC e pela negligência do Ministério da Saúde que nos tomou centenas de milhares de vidas deixou marcas de sofrimento em nossa sociedade que se projetaram no comportamento oposicionista do eleitorado ao final de 2022. Adicionalmente, estima-se que o Sistema Único de Saúde (SUS) deixou de receber cerca de R$ 86 bilhões entre 2018 e 2023 por causa da Emenda Constitucional 95. Impactos semelhantes podem ser observados no orçamento da educação, com perdas próximas a R$ 100 bilhões apenas até 2019, de acordo com cálculos da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Essa significativa redução de recursos indica a urgência de não apenas assegurar o cumprimento dos pisos constitucionais, mas também de adotar uma expansão fiscal que vá além desses mínimos para recuperar a capacidade orçamentária severamente afetada nos últimos anos.

Portanto, se o atual governo optar por desmontar o sistema constitucional de proteção precisamente da saúde e da educação, é possível que o futuro o reserve lugar semelhante ao da Syriza, partido que negou o seu programa para capitular às imposições de austeridade dos credores da dívida grega e definhou de 149 integrantes no Parlamento Helênico em 2015, para apenas um terço disto na atualidade. Não há estratégia comunicacional, diálogo com setores evangélicos ou ampliação de coalizão que resista a um eleitorado frustrado em suas expectativas de receber políticas públicas asseguradoras dos direitos de cidadania. Filas para atendimentos médicos ou escolas precárias são um dos cabos eleitorais com que o extremismo bolsonarista pode contar.

Sob o prisma econômico, a escolha de rever os pisos com saúde e educação também se comprova inadequada. O fato é que a literatura acadêmica é abundante ao concluir que medidas de contração fiscal não geram efeitos macroeconômicos expansionistas, como se supôs nos anos 1990. Gastos com saúde e educação, aliás, são capazes de impactar sobre o bem-estar das pessoas e de impulsionar prosperidade em uma medida que nenhuma disciplina fiscal conseguiria. Sugere-se ao leitor mais interessado no tema que consulte bases de dados abertos, como o projeto Our World in Data ou o estudo do FMI de título “Tackling Inequality” e consulte números como PIB, Gini e IDH (i); gastos públicos com saúde e educação (ii); e relação dívida/PIB de diferentes países (iii). Isso seria suficiente para indicar que “i” e “ii” estão fortemente correlacionados, mas “iii’ não é um elemento relevante nessa associação.

Rever o regime de arrocho fiscal promulgado em 2023 deve prevalecer, assim, sobre essa opção ao se revelar a saída a um só tempo lícita, condizente com o programa eleito nas urnas e capaz de garantir crescimento econômico com justiça social. O Brasil possui uma dívida histórica com o seu povo em relação à saúde e à educação. As feridas sociais deixadas pela pandemia e pelo governo de extrema direita ainda pulsam em nossa sociedade. Alterar o pacto constitucional de 1988, para amesquinhar o devido custeio de políticas asseguradoras desses direitos, em nome de uma anticientífica tese de austeridade fiscal com efeitos expansionistas seria um grave e irreparável erro desse governo. Ainda é tempo de evitá-lo e apoio popular para essa escolha não faltará.

Francisco Tavares é professor associado da Faculdade de Direito da UFG e coordenador do Observatório Brasileiro do Sistema Tributário (www.observabr.org.br) e do Grupo de Estudos e Pesquisas Sócio-Fiscais (www.sociologiafiscal.com).

Camila Vaz é doutoranda em Ciência Política pelo IESP-UERJ e pesquisadora associada ao Grupo de Estudos de Economia e Política (GEEP/IESP-UERJ), ao Grupo de Economia do Setor Público (GESP/UFRJ) e ao Grupo de Estudos e Pesquisas Sócio-Fiscais da UFG (GESF/UFG).

David Deccache é mestre em Economia pela UFF e doutor em Economia pela UNB. Atualmente, é assessor técnico na área econômica de bancada na Câmara dos Deputados.

Referência bibliográfica

TAVARES, FRANCISCO MATA MACHADO; DECCACHE, DAVID. Democracia, direitos e política fiscal: desafios para a reconstrução democrática brasileira sob o novo marco fiscal. Ateliê geográfico (UFG), v.17, p.133-158, 2023.

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